Tenho medo de ligar
a televisão, como quem entra no metrô à hora de ponta, e de que por descuido ou
por maldade alguém me pise a inteligência: “desculpe, sim?!, foi sem querer”.
Ligo o aparelho, encolhido no meu canto, fingindo que nem estou ali, mas se por
acaso os meus olhos tropeçam nalgum sujeito com aspecto de bárbaro, saio logo.
A seguir fecho os olhos e sonho um peixe. Foi
um velho pescador pernambucano quem me ensinou isto. Eu estava sentado nas
areias de Itamaracá, com um bloco de papel nos joelhos, concluindo uma
aquarela. Ele veio por trás e ficou um momento observando:
_ Por que faz isso?
– perguntou. _O mar não cabe aí!
Sentou-se ao meu
lado. Disse-me que às vezes, ao acordar, lhe doía, do lado esquerdo do peito, a
humanidade. Caminhava então até à praia, estendia-se de costas na areia, e
sonhava um peixe.
_ Foi Clarice, sabe?
Ela me iniciou.
Na altura não
compreendi a quem o velho se referia. Começou por sonhar peixes pequenos, muito
rudimentares, só um veloz traço de prata, só uma ligeira vírgula refulgindo no
ar, mas com o tempo, à medida que desenvolvia a técnica, passou a sonhar
garoupas, meros, inclusive espadartes. A ambição dele era sonhar uma baleia.
Uma baleia azul.
_Esteja atento à cor
das águas – preveniu-me. _Por exemplo, de manhã, bemcedinho, se o mar estiver
liso e prateado, é bom para sonhar savelhas. O camarupim, que é um peixe nosso,
grande, se sonha muito bem depois que chove, e os rios anoitecem o mar. Já os
xaréus são melhor sonhados quando o mar azula.
E as sereias? Ele
olhou-me atônito:
_Sereias?! Servem para quê, as sereias?
Sereias são bichos mal sonhados, como os ornitorrincos ou os generais. Você há
de conseguir fazer melhor.
Venho tentando.
Nunca soube o nome do pescador. Era um sujeito alto, aprumado como um poste, de
olhos acesos e uma pele sadia, bem esticada sobre os ossos. Tinha uma voz tão
clara e calorosa que, à noite, enquanto falava, era como se cuspisse
pirilampos. Uma voz daquelas devia poder transmitir-se em testamento. A mim
fazia-me lembrar a do Fernando Alves. Contava-se na ilha que o velho estivera
três semanas perdido no mar. Salvara-se por milagre, porque ao décimo terceiro
dia Nossa Senhora Aparecida lhe apareceu no saveiro,
trazendo nas mãos um pernil de porco e uma garrafa de litro de Coca-Cola. Ele
próprio me desmentiu o milagre, até um pouco irritado:
_Nossa Senhora
Aparecida?! Qual Nossa Senhora, rapaz?! Quem me apareceu foi Clarice
Lispector.
Em todas as estórias
de pescadores há sempre exageros, por vezes até mentiras descaradas, ou não
seriam estórias de pescadores. Neste ponto, porém, sou peremptório – uso esta
palavra pela primeira vez na vida; não veem que reluz? – ele lia! Era um grande
devoto de Clarice Lispector e Alberto Caeiro. Contou-me que Clarice
apareceu-lhe de madrugada, trazendo nas mãos Uma Maçã no Escuro, e lhe leu o
romance inteiro.
A seguir, depois que o achou mais recomposto,
ensinou-o a sonhar peixes.
_Sonhar peixes faz
bem à alma. Lembre-se que por cada homem mau no mundo há no mar mil peixes
bons.
O meu pescador não
tinha televisão. Às vezes acontecia demorar-se num bar, ou na praça (havia uma
televisão na praça), e o fragor das guerras alheias roubava-lhe o sono. Ele
sofria com os erros dos outros. Andava pela ilha com A Hora da Estrela debaixo
do braço, tentando, sem sucesso, converter os demais. Só eu lhe dava atenção:
_Se nada mais der
certo leia Clarice.
Uma tarde vi-o
sonhar um golfinho.
_Foi o meu primeiro mamífero – disse-me
depois, exausto pelo esforço –, para a semana vou tentar uma orca.
Nunca mais voltei a
Itamaracá, nunca mais o vi, mas calculo que por esta altura ele já tenha
conseguido sonhar a sua baleia azul. Já a deve ter lançado ao mar, cento e
trinta toneladas de puro sonho, e o canto dela há de estar ressoando nas águas.
Um dia as baleias virão para salvar os homens.
Extraído de Manual Prático de Levitação, Rio de Janeiro: Gryphus, 2005, p. 63-67.
SOBRE O AUTOR:
José Eduardo
Agualusa é capaz de atingir profundezas da alma, não só com seu olhar
perscrutador, mas com sua prosa plena de humor, imaginação e quase delicadeza –
mesmo tratando de questões difíceis de abordar – de suas temáticas.
Escritor de raízes
angolana, brasileira e portuguesa, nasceu em 1960, na cidade de Huambo, Angola.
Estudou Agronomia e Silvicultura em Lisboa, mas envolveu-se com o jornalismo e,
na década de 90, com a ficção.
É considerado um dos
autores mais importantes da nova literatura africana, tanto no romance, como no
conto e poesia. O que se pontua em sua obra, percebe-se logo, é a integração
natural entre os países de língua portuguesa, através de uma postura de quem
passeia confortavelmente pelas influências culturais de cada um deles.
Por Aline Andra
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