quarta-feira, 24 de abril de 2013

A mulher madura - Affonso Romano de Sant'Anna





 
 
"O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.
De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.
Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda.
A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.
A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.
A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.
A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.
O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.
Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza.
Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.
Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.
A mulher madura está pronta para algo definitivo.
Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o voo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta joias. As joias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.
A mulher madura é um ser luminoso, é repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes.
Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar."


(O texto acima foi extraído do livro "A Mulher Madura", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1986, pág. 09.)
 
 
 
 
SOBRE O AUTOR:
 
Affonso Romano de Sant'Anna nasceu em Belo Horizonte (MG) em 1937. Filho de pais protestantes, foi criado para ser pastor. Aos 17 anos, pregava o evangelho em várias cidades, visitava favelas, prisões e hospitais. Essa experiência vai influenciar seu futuro estilo literário que se caracteriza por um forte conteúdo social. 
Formou-se bacharel em Letras Neolatinas na Faculdade de Filosofia da UFMG em 1962. Dois anos depois, tornou-se doutor em Literatura Brasileira com tese sobre Carlos Drummond de Andrade  (Drummond, o gauche no tempo) que mereceu quatro prêmios nacionais. No ano seguinte, teve publicado seu primeiro livro de poesia, Canto e Palavra. Desde então, colaborou nas principais publicações culturais do país; foi diretor do Departamento de Letras e Artes da PUC/RJ; lecionou em universidades do Texas (EUA), Colônia (Alemanha) e Aix-en-Provence (França); foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional - 8ª biblioteca do mundo com um acervo de 8 milhões de volumes - promovendo modernização, informatização e programas de alcance nacional e internacional. Vale  lembrar que foi ele o idealizador  do projeto "Uma biblioteca em cada município", que contou com mais de 30 mil voluntários e estabeleceu-se em 300 municípios do Brasil.
Teve também participação ativa nos movimentos de vanguarda que transformaram a poesia brasileira. Data desse período seu envolvimento nos movimentos políticos que marcaram o país. Como poeta e cronista, foi considerado um dos 10 jornalistas formadores de opinião por desempenhar atividades no campo político e social. 
Além disso, seu interesse pela Música o levou a fazer parte do "Madrigal Renascentista", na época, regido pelo maestro Isaac Karabtchevsky.   
Com mais de 40 livros publicados e diversos textos convertidos em balé, teatro e música, ganhou inúmeros prêmios e comendas nacionais e internacionais.
Um intelectual do 1º escalão, que se destaca por conseguir unir a palavra à ação, realização de poucos.
 
 
 
Fonte das imagens: Google
Fontes das pesquisas: www.releituras.com
                                        www.jornaldepoesia.jor.br/aromano.html
                                       
 
Por Aline Andra
 
  

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