quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O adeus - Rubem Braga



The Embrace - Gustav Klimt 


No oitavo dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares de edifícios; que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? Entretanto a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar. O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar; e assim três, quatro vezes sucessivas.
Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro. Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante.
Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha. Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado, de frente para a janela por onde se filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”.
Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro: inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível, como um lento bailado. Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam?
Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos. Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago.
Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos. O homem fez um grande embrulho de jornal; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação. E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre acabara; alguém viera e batera à porta, e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo o recibo de uma carta registrada, e quando o telefone bateu foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isso num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo não os via assim, em plena luz), um olhar de apelo e de tristeza onde entretanto ainda havia uma inútil, resignada esperança.


 

SOBRE O AUTOR:
 

Rubem Braga é considerado um dos melhores e mais populares cronistas brasileiros, gênero injustamente repudiado por alguns.
Nasceu em 12 de janeiro de 1913 na cidade de Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo, porém, viveu no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo. Iniciou-se no jornalismo ainda estudante, escrevendo uma crônica diária no jornal “Diário da Tarde”. Formou-se em Direito, mas não exerceu a profissão e continuou trabalhando como repórter. Participou da cobertura da Revolução Constitucionalista deflagrada em São Paulo, na qual chegou a ser preso. Durante a 2ª Guerra Mundial, ele foi correspondente de guerra na Itália junto à F.E.B. (Força Expedicionária Brasileira). Fez diversas viagens ao exterior, onde desempenhou função diplomática em Rabat, a capital do Marrocos. Após seu regresso, estabeleceu-se definitivamente no Rio de Janeiro, cujos costumes ele eternizou em muitos dos seus textos com sua linguagem coloquial e temática simples.
De temperamento introspectivo e solitário, sua marca registrada é, segundo o crítico Afrânio Coutinho, a “crônica poética, na qual alia um estilo próprio a um intenso lirismo, provocado pelos acontecimentos cotidianos, pelas paisagens, pelos estados da alma, pelas pessoas, pela natureza”.
Em 1968, com Fernando Sabino e Otto Lara Resende, ele fundou a Editora Sabiá, responsável pelo lançamento no Brasil de escritores como Pablo Neruda, Gabriel García Márquez e Jorge Luiz Borges.
Aos 77 anos, em 17 de dezembro de 1990, com quinze mil crônicas escritas em mais de 62 anos de jornalismo, Rubem Braga faleceu sozinho como desejara (em consequência de um tumor na laringe que ele preferiu não operar nem tratar quimicamente), dois dias depois de reunir os amigos para uma despedida em sua casa.






 


Fonte da imagem: Google
Fontes da pesquisa: http://www.releituras.com/rubembraga_bio.asp
                                    http://pt.wikipedia.org/wiki/Rubem_Braga




 

 

 

Por Aline Andra





2 comentários:

  1. Parabéns por seu trabalho !!!!! Realmente vc é uma artista em tudo que faz ....
    Finalmente consegui entrar em seu blog ..... Namastê

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  2. Obrigada, minha amiga! Senti sua falta...
    Namastê

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