terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A chave de casa - Tatiana Salem Levy




 


Li, com algum atraso, o romance (Ed. Record, 2007, 208págs.) desta autora que venceu o Prêmio São Paulo de Literatura de 2008, na categoria de autor estreante. Gostei muito.
Tatiana surpreende logo às primeiras páginas, não só por não se ater à segurança das fórmulas simples da escrita linear e cômoda, como também por seu estilo contundente e quase desconcertante. O gênero utilizado por ela, a autoficção, apaga propositalmente os limites entre o autor, o narrador e a personagem num jogo estimulante que, obrigatoriamente, inclui um leitor que precisa estar atento. É difícil ficar indiferente às possíveis semelhanças entre a escritora e a personagem embora ela tenha escrito: “Conto (crio) essa história para dar sentido à imobilidade”.
Contada num tom intimista e confessional, toda a narrativa tem raízes em conflitos pessoais e nas lembranças (memória) da família. O avô, judeu imigrante que chegou ao Brasil ainda jovem, deixando pais, irmãos e um amor mal resolvido na Turquia; as experiências dolorosas dos pais durante a ditadura militar e a necessidade do exílio em Portugal; o sofrimento pela morte da mãe, que continua influenciando seus pensamentos e ações com constantes interferências que interrompem o texto em vários momentos; a relação obsessiva com um homem dominador e seus sentimentos de inadequação e inconsistência.
Através destas quase “cenas” que se misturam, interagem e se completam no espaço e no tempo, a personagem resolve encontrar sua identidade cultural, uma transformação e um sentido para sua vida quando seu avô lhe entrega a chave da casa de Esmirna, que deixou para trás há tantos anos e a incita a fazer esta viagem para o desconhecido e o inesperado. Viagem que passa a ser também do leitor.
 
(...)
"Para escrever esta história, tenho de sair de onde estou, fazer uma longa viagem por lugares que não conheço, terras onde nunca pisei. Uma viagem de volta, ainda que eu não tenha saído de lugar algum. Não sei se conseguirei realizá-la, se algum dia sairei do meu próprio quarto, mas a urgência existe. Meu corpo já não suporta tanto peso: tornei-me um casulo pétreo. Tenho o rosto abatido, olheiras muito mais velhas do que eu. Minhas bochechas pendem, ouvindo o chamado da terra. Meus dentes mal conseguem mastigar. Sinto um incômodo abissal, como se a gravidade agisse com mais intensidade sobre mim, puxando duas vezes meu corpo para baixo.
Não tenho a mais ínfima ideia do que me aguarda nesse caminho que escolhi. Da mesma forma, não sei se faço a coisa certa. Muito menos se existe alguma lógica, alguma explicação admissível para essa empreitada. Mas ando em busca de um sentido, de um nome, de um corpo. E por isso farei essa viagem de volta, para ver se não os esqueci perdidos por aí, em algum lugar ignoto.
Sem me levantar, pego a caixinha na mesa-de-cabeceira. Dentro dela, em meio a pó, bilhetes velhos, moedas e brincos, descansa a chave que ganhei do meu avô. Tome, ele disse, essa é a chave da casa onde morei na Turquia. Olhei-o com expressão de desentendimento. Agora, deitada na cama com a chave nas mãos, sozinha, continuo sem entender. E o que vou fazer com ela? Você é quem sabe, ele respondeu, como se não tivesse nada a ver com isso. As pessoas vão ficando velhas e, com medo da morte, passam aos outros aquilo que deveriam ter feito mas, por motivos diversos, não fizeram.
E agora cabe a mim inventar que destino dar a essa chave, se não quiser passá-la adiante.
(...)
Não faço outra coisa senão olhar, tocar, observar a chave. Conheço seus detalhes de cor, o tamanho preciso de suas curvas e de sua argola, seu peso, sua cor gasta. Uma chave desse tamanho não deve abrir porta alguma. A essa altura já deveriam por certo ter mudado, se não a porta, certamente a fechadura. Seria um disparate acreditar que tanto tempo depois a chave da casa permaneceria a mesma. Tenho certeza de que até meu avô é consciente disso, mas também imagino que deva ter uma curiosidade enorme de saber se ainda está lá o que deixou para trás. Que coisa estranha, que coisa esquisita deve ser: largar o país, a língua, abandonar a família em direção a algo completamente novo e, sobretudo, incerto.
Ele me contou que o navio onde viajou era descomunal, seu primeiro e único navio. A embarcação estava abarrotada de pessoas, todas com a mesma esperança que ele: conseguir uma vida melhor em país diferente. Dos irmãos, foi o primeiro a vir, apenas duas malas na mão e alguns contatos no Brasil. Não mais do que vinte anos quando deixou a Turquia. Tempos depois o irmão mais novo se juntaria a ele. A irmã gêmea faleceria de tuberculose. O irmão mais velho casaria e continuaria em Esmirna. A mãe, ele só reencontraria longos anos mais tarde, quando, viúva, decidiria se mudar para o Brasil.
Quantas vezes não ouvi essa mesma história? A dor de nunca mais ter visto o pai nem a irmã, de nunca mais ter pisado na terra que primeiro fora sua. A dor de só ter trazido a mãe a tempo de perdê-la. De ter visto tanta miséria no navio, tanta miséria na terra que deixara. Quantas vezes?
E agora o que ele quer? Que eu vá atrás da sua história, recuperar o seu passado? Por que essa chave, essa missão descabida?”

 



Por Aline Andra
 
 

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