Li, com algum
atraso, o romance (Ed. Record, 2007, 208págs.) desta autora que venceu o Prêmio
São Paulo de Literatura de 2008, na categoria de autor estreante. Gostei muito.
Tatiana surpreende
logo às primeiras páginas, não só por não se ater à segurança das fórmulas simples
da escrita linear e cômoda, como também por seu estilo contundente e quase
desconcertante. O gênero utilizado por ela, a autoficção, apaga propositalmente
os limites entre o autor, o narrador e a personagem num jogo estimulante que,
obrigatoriamente, inclui um leitor que precisa estar atento. É difícil ficar
indiferente às possíveis semelhanças entre a escritora e a personagem embora
ela tenha escrito: “Conto (crio) essa
história para dar sentido à imobilidade”.
Contada num tom
intimista e confessional, toda a narrativa tem raízes em conflitos pessoais e
nas lembranças (memória) da família. O avô, judeu imigrante
que chegou ao Brasil ainda jovem, deixando pais, irmãos e um
amor mal resolvido na Turquia; as experiências dolorosas dos pais durante a ditadura
militar e a necessidade do exílio em Portugal; o sofrimento pela
morte da mãe, que continua influenciando seus pensamentos e ações com
constantes interferências que interrompem o texto em vários momentos; a
relação obsessiva com um homem dominador e seus sentimentos de inadequação e inconsistência.
Através destas quase
“cenas” que se misturam, interagem e se completam no espaço e no tempo, a
personagem resolve encontrar sua identidade cultural, uma transformação e um
sentido para sua vida quando seu avô lhe entrega a chave da casa de Esmirna,
que deixou para trás há tantos anos e a incita a fazer esta viagem para o desconhecido
e o inesperado. Viagem que passa a ser também do leitor.
(...)
"Para escrever
esta história, tenho de sair de onde estou, fazer uma longa viagem por lugares
que não conheço, terras onde nunca pisei. Uma viagem de volta, ainda que eu não
tenha saído de lugar algum. Não sei se conseguirei realizá-la, se algum dia
sairei do meu próprio quarto, mas a urgência existe. Meu corpo já não suporta
tanto peso: tornei-me um casulo pétreo. Tenho o rosto abatido, olheiras muito
mais velhas do que eu. Minhas bochechas pendem, ouvindo o chamado da terra.
Meus dentes mal conseguem mastigar. Sinto um incômodo abissal, como se a
gravidade agisse com mais intensidade sobre mim, puxando duas vezes meu corpo
para baixo.
Não tenho a mais
ínfima ideia do que me aguarda nesse caminho que escolhi. Da mesma forma, não
sei se faço a coisa certa. Muito menos se existe alguma lógica, alguma
explicação admissível para essa empreitada. Mas ando em busca de um sentido, de
um nome, de um corpo. E por isso farei essa viagem de volta, para ver se não os
esqueci perdidos por aí, em algum lugar ignoto.
Sem me levantar,
pego a caixinha na mesa-de-cabeceira. Dentro dela, em meio a pó, bilhetes
velhos, moedas e brincos, descansa a chave que ganhei do meu avô. Tome, ele
disse, essa é a chave da casa onde morei na Turquia. Olhei-o com expressão de
desentendimento. Agora, deitada na cama com a chave nas mãos, sozinha, continuo
sem entender. E o que vou fazer com ela? Você é quem sabe, ele respondeu, como
se não tivesse nada a ver com isso. As pessoas vão ficando velhas e, com medo
da morte, passam aos outros aquilo que deveriam ter feito mas, por motivos
diversos, não fizeram.
E agora cabe a mim
inventar que destino dar a essa chave, se não quiser passá-la adiante.
(...)
Não faço outra coisa
senão olhar, tocar, observar a chave. Conheço seus detalhes de cor, o tamanho
preciso de suas curvas e de sua argola, seu peso, sua cor gasta. Uma chave
desse tamanho não deve abrir porta alguma. A essa altura já deveriam por certo
ter mudado, se não a porta, certamente a fechadura. Seria um disparate
acreditar que tanto tempo depois a chave da casa permaneceria a mesma. Tenho
certeza de que até meu avô é consciente disso, mas também imagino que deva ter
uma curiosidade enorme de saber se ainda está lá o que deixou para trás. Que
coisa estranha, que coisa esquisita deve ser: largar o país, a língua,
abandonar a família em direção a algo completamente novo e, sobretudo, incerto.
Ele me contou que o
navio onde viajou era descomunal, seu primeiro e único navio. A embarcação
estava abarrotada de pessoas, todas com a mesma esperança que ele: conseguir
uma vida melhor em país diferente. Dos irmãos, foi o primeiro a vir, apenas
duas malas na mão e alguns contatos no Brasil. Não mais do que vinte anos
quando deixou a Turquia. Tempos depois o irmão mais novo se juntaria a ele. A
irmã gêmea faleceria de tuberculose. O irmão mais velho casaria e continuaria
em Esmirna. A mãe, ele só reencontraria longos anos mais tarde, quando, viúva,
decidiria se mudar para o Brasil.
Quantas vezes não
ouvi essa mesma história? A dor de nunca mais ter visto o pai nem a irmã, de
nunca mais ter pisado na terra que primeiro fora sua. A dor de só ter trazido a
mãe a tempo de perdê-la. De ter visto tanta miséria no navio, tanta miséria na
terra que deixara. Quantas vezes?
E agora o que ele
quer? Que eu vá atrás da sua história, recuperar o seu passado? Por que essa
chave, essa missão descabida?”
Por Aline
Andra
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