Já não me sinto tão
à vontade para perder tempo lendo qualquer livro que encontro como acontecia
antigamente. Naquele tempo, uma imensa curiosidade e o prazer quase compulsivo de
ler me incitavam a aproveitar qualquer oportunidade, independente da qualidade.
Agora, naturalmente,
tenho minhas referências e preferências, mas busco também a sedução. O texto
tem que me conquistar logo às primeiras linhas. Não importa se foi escrito por
autor consagrado, admirado e respeitado mesmo por mim. Tem que haver empatia,
uma afinidade que brota espontaneamente.
Foi o que aconteceu com Seda (Companhia das Letras, 121 págs., 1995). Gostei de imediato do
estilo narrativo desse autor italiano, até então desconhecido para mim.
Ganhador de vários prêmios literários importantes e com obras publicadas desde
1991, Alessandro Baricco, que também é pianista por formação e estudou filosofia,
já garantiu seu lugar como um dos bons escritores contemporâneos e, sobretudo,
conquistou-me com uma história contada em frases contidas, concisas e com um
ritmo e uma cadência quase musicais. Um texto irretocável por não ter excessos, com uma pontuação justificada e original
e por estar completo em sua intenção de provocar sensações quase líricas e “girar
em torno de si mesmo” como os casulos de seda que direcionavam a vida de Hervé
Joncour, o protagonista, um pacato cidadão do séc. XIX.
Para ser mais preciso: Hervé Joncour comprava e vendia
bichos-da-seda quando a essência dos bichos-da-seda consistia em serem eles
minúsculos ovos, de cor amarela ou cinza, imóveis e aparentemente mortos. A
palma de uma mão podia conter milhares deles.
“Isso é o que se chama ter uma fortuna na mão.”
No início de maio os ovos se abriam e liberavam uma
larva que, depois de trinta dias de sôfrega alimentação à base de folhas de
amoreira, fechava-se de novo num casulo, para dali sair de maneira definitiva
duas semanas mais tarde, deixando atrás de si um patrimônio que em seda fazia
mil metros de fio cru e em dinheiro uma bela soma de francos franceses:
admitindo-se que tudo corresse conforme as regras e, como no caso de Hervé
Joncour, numa região qualquer do sul da França.
Lavilledieu era o nome da cidade onde Hervé Joncour
vivia.
Hélène, o nome da mulher dele.
Não tinham filhos. (págs. 8 e 9)
Hervé, que preferia
observar a vida a vivê-la, deixou-se convencer por Baldabiou - este sim um
empreendedor e idealista em todos os sentidos, que revelou à cidade os segredos da
sericicultura e da fiação da seda - e partiu em longas viagens além do
Mediterrâneo com o intuito de negociar a compra e o transporte dos ovos de
bichos-da-seda. Sua vida transcorria próspera e ordenada até ser enviado para o
Japão, um território isolado, perigoso e que dificultava o acesso de
estrangeiros, “o fim do mundo”.
Baldabiou conhecia todas essas histórias. Conhecia sobretudo
uma lenda que recorrentemente surgia nos relatos de quem lá estivera. Ela dizia
que naquela ilha produziam a mais bela seda do mundo. E a produziam havia mais
de mil anos, de acordo com ritos e segredos que atingiram uma exatidão mística.
Baldabiou pensava que se tratava não de uma lenda, mas da verdade pura e
simples. Uma vez tivera entre os dedos um véu tecido com fio de seda japonesa.
Era como ter entre os dedos o nada. Assim, quando tudo parecia ir para o
inferno por causa daquela história da pebrina e dos ovos doentes, ele pensou:
- A ilha está cheia de bichos-da-seda. E uma ilha
aonde em duzentos anos não chegou nenhum mercador chinês ou segurador inglês é
uma ilha aonde jamais chegará doença alguma.
Não se limitou a pensar: disse-o a todos os produtores
de seda de Lavilledieu, depois de convocá-los ao café de Verdun. Nenhum deles
jamais ouvira falar do Japão.
-Devemos atravessar o mundo para comprar ovos como
Deus manda num lugar onde, se vêem um estrangeiro, enforcam-no?
- Enforcavam-no – esclareceu Baldabiou.
Não sabiam o que pensar. Alguém expressou uma dúvida.
- Por alguma razão ninguém no mundo pensou em comprar
ovos lá longe.
Baldabiou poderia blefar e lembrar que no resto do
mundo não havia outro Baldabiou. Mas preferiu dizer as coisas como eram.
- Os japoneses se conformaram em vender a seda deles.
Mas não os ovos. Mantêm-nos guardados. E quem tentar levá-los para fora da ilha
cometerá um crime.
Os produtores de seda de Lavilledieu eram, alguns mais
outros menos, cavalheiros, e jamais pensariam em infringir nenhuma lei no seu
próprio país. A ideia de fazê-lo no outro lado do mundo, porém, pareceu-lhes
razoavelmente sensata.
Era o ano de 1861. Flaubert escrevia Salammbô, a
iluminação elétrica ainda era hipótese, e Abraham Lincoln, do outro lado do
oceano, combatia uma guerra cujo fim nunca veria. Os sericicultores de
Lavilledieu se uniram em consórcio e coletaram a quantia, considerável,
necessária para a expedição. A todos pareceu lógico confiá-la a Hervé Joncour.
Quando Baldabiou lhe pediu que aceitasse, ele respondeu com uma pergunta.
- E onde se localiza, precisamente, esse Japão?Sempre naquela direção. Até o fim do mundo.
Partiu em 6 de outubro. Sozinho. (págs. 23 a 25)
E, sozinho,
amadureceu em uma história que se repetia sutilmente e com pequenas variações como um refrão, mas na
verdade viveu a experiência de transmutar a realidade em misteriosas e
desconhecidas sensações, na busca do que é invisível e na descoberta de uma paixão proibida.
À noite
Hervé Joncour preparou a bagagem. Depois se deixou levar ao grande cômodo calçado
de pedras, para o ritual do banho. Deitou-se, fechou os olhos e pensou no
grande viveiro, louca prova de amor. Puseram-lhe um pano molhado sobre os
olhos. Pela primeira vez. Instintivamente tentou retirá-lo, mas uma mão tomou a
sua e a deteve. Não era a mão velha de uma velha.
Hervé Joncour sentiu a água escorrer sobre o corpo,
primeiro nas pernas, depois pelos braços, e pelo peito. Água como óleo. E um
silêncio estranho, ao redor. Sentiu a leveza de um véu de seda que descia sobre
ele. E as mãos de uma mulher – de uma mulher – que o enxugavam acariciando sua
pele, por toda parte: aquelas mãos e aquela seda tecida de nada. Não se mexeu,
nem quando sentiu as mãos subirem das costas para o pescoço e os dedos – a seda
e os dedos – subirem até seus lábios, e roçarem-nos, uma vez, lentamente, e
desaparecerem.
Hervé Joncour sentiu ainda o véu de seda se erguer e
se separar dele. A última coisa foi uma mão que abria a sua e punha algo na
palma.
Esperou longamente, no silêncio, sem se mover. Depois,
lentamente, retirou o pano molhado dos olhos. Já não havia quase luz, no
cômodo. Não havia ninguém, ao redor. Levantou-se, apanhou a túnica que jazia
dobrada no chão, colocou-a sobre os ombros, saiu do cômodo, atravessou a casa,
chegou diante de sua esteira e se deitou. Pôs-se a observar a chama que tremia,
diminuta, na lanterna. E, com cuidado, parou o Tempo, por todo o tempo que
desejou.
Foi um nada, depois, abrir a mão e ver aquele papel.
Pequeno. Poucos ideogramas desenhados um embaixo do outro. Tinta preta. (págs. 48 e 49)
Envolvente!
Por Aline
Andra
Excelente Resenha, Aline.
ResponderExcluirParabéns!
Parabéns ..... tão interessante e incentivador à leitura ..... Vc. sabe "prender " o leitor... com sua resenha .... Namastê
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