Óleo sobre tela - André Lhote
“A palavra campo
designa um terreno extenso e não acidentado, e, para além de sua acepção
agrícola, o espaço capaz de tornar-se o teatro de um jogo de forças, sugerido
pela palavra alemã Kampf, da mesma
raiz, significando luta, e pela palavra campeão, o lutador. O campo está a um
passo da arena e guerra. Mas uma arena que se presta mais à visibilização do
combate, isto é, à sua espetacularização e sua simbolização, do que à sua
realização literal, quando ele não se destina expressamente a fins agressivos e
passa a decidir, num tira-teima ritual com o outro, sob o olhar de outros, quem
detém, por um momento ritualizado, o domínio de uma modalidade. (...) É essencial
entender também que, ao dar forma lúdica ao mito da concorrência universal, o
futebol criou o campo simbólico onde essa concorrência muda de sentido – tanto
socialmente, já que apropriada por agentes que não teriam oportunidade no campo
da competição econômica (operários ingleses ou brasileiros pobres, por
exemplos), quanto simbolicamente, já que a concorrência se dá em código
corporal e não verbal, irradiante de sentidos não determinados, desfrutando de
um estatuto correspondente ao da autonomia da obra de arte.” (...) De qualquer
modo, dizia Pasolini, o delírio do gol é puramente poético, chegue-se a ele por
uma via ou por outra, e, como tal, é o momento e o lugar em que a diferença
entre prosa e poesia se desfaz, já que ‘todo gol é sempre uma invenção, é
sempre uma subversão do código: todo gol é inexorabilidade, fulguração,
estupor, irreversibilidade”.
“O goleiro é sabidamente um ser de exceção, e, nos momentos cruciais, um solitário. Como os indivíduos sagrados e malditos, ele pode o que os outros não podem (tocar a bola com as mãos) e não pode o que os outros podem (atravessar todo o campo e consumar o desejo maior do jogo, o gol). Se a impossibilidade dos outros é ditada, no entanto, pela regra do jogo, a do goleiro é imposta pelo peso de um tabu, que veio caindo sintomaticamente, como sabemos. De todo modo, ele não pode abandonar por completo o gol porque essa é a zona interditada por cuja virgindade ele é o responsável. A virgindade do gol é um tabu no sentido preciso da expressão (que tem sua origem na esfera mágico-religiosa): espaço consagrado simbolicamente, que não deve ser profanado. Tradicionalmente, o goleiro participava, mais que nenhum outro jogador, do destino terrível de todos aqueles que são a representação encarnada do tabu, e a própria metonímia da virgindade sagrada posta no limiar da profanação. No futebol, onde o tabu duplicado no espelho do zero a zero inicial quer ser violado pela confrontação dos contrários, o goleiro figurava como uma espécie de vestal posta a prêmio, virgem guardiã do fogo sagrado cujo poder participa todo o tempo da ameaça de imolação.”
“A ‘lógica dialética’, no futebol, pede a prosa consistente que eleva o tecido do jogo para além do discurso trivial, apático ou protocolar. Como já foi dito, a prosa do futebol não exclui necessariamente a poesia, que, ao contrário, precisa daquela para se realizar. Quando isso acontece (como no quarto gol da seleção brasileira na final contra a Itália, da Copa de 1970, em que a bola vem bailando desde a própria defesa numa sucessão de passes e dribles, gratuitos e eficazes, de Clodoaldo até o passe de Pelé no vazio para o chute inapelável de Carlos Alberto, depois da bola levemente levantada ao acaso pelo próprio ‘Sobrenatural de Almeida’ – em forma de ‘morrinho’), atingimos aquele ponto só formulável em termos como os de Fernando Pessoa, ao fazer o elogio da capacidade superior que a prosa plena teria, de conter em seu corpo a própria poesia e todas as artes: “Há prosa que dança, que canta, que se declama a si mesma. Há ritmos verbais que são bailados, em que a ideia se desnuda sinuosamente, numa sensualidade translúcida e perfeita’.”
Veneno Remédio – O futebol e o Brasil
José Miguel Wisnik, Companhia das Letras, São Paulo, 2008
José Miguel Wisnik, Companhia das Letras, São Paulo, 2008
Por Aline Andra
Caso não lesse esta excelente Resenha, dificilmente me interessaria em ler este livro.
ResponderExcluirMais uma vez, parabéns Aline por suas variadas e excelentes matérias.