“O poder de
irradiação do futebol é impensável sem uma fenomenologia da bola: esse objeto
distinto de todos os outros - sem quinas, pontas, dorso ou face, igual a si
mesmo em todas as direções de sua superfície -, que rola e quica como se
animado por uma força interna, projetável e abraçável como nenhum. A bola é redonda – não há como recuar
diante da mais rotunda das obviedades. Ao contrário, é preciso redescobrir esse
fato espantoso, que a distingue de todo o resto: “a esfera é [...] a forma
primordial, [...] a menos ‘especificada’ de todas, semelhante a ela mesma em
todas as direções, de sorte que, num movimento de rotação qualquer em torno do
seu centro, todas as suas posições sucessivas podem ser sempre rigorosamente
superpostas umas às outras”. Mas essa forma universal ganha uma concretude
rasante quando convertida em objeto de jogo, feita de gomos de couro, bexiga ou
borracha, cheia de forragem ou de ar, imitada num coco, numa laranja ou numa
bola de meia. Assim ela é ao mesmo tempo geométrica e visceral, telúrica e
aérea, pedestre e celeste, platônica e aristotélica, obra de engenharia e de
bricolagem: perfeita em si mesma e sujeita a todas as apropriações (“pura ou
degradada até a última baixeza”, como no verso de Manuel Bandeira sobre a mulher-estrela-da-manhã, passando, como
se inatingível, pelas mãos e pelos pés de todos).”
“O simbolismo
agonístico das práticas com bola, surgido nas mais remotas civilizações
agrárias, aparece comumente ligado a ritos em que os movimentos da esfera são
tidos como dotados da propriedade de reger o sol e a lua, dar-lhes forças,
impedir ou produzir cataclismas, propiciar a fartura. Em contextos arcaicos, a
bola tem o condão da “magia simpática”, fundado na sua semelhança com as luminárias
celestes. Achados arqueológicos, indícios iconográficos e resíduos etimológicos
apontam para essa conjugação de bola e movimentos astrais num arco amplo o
bastante para ir do Oriente ao Ocidente, de chineses, japoneses, egípcios e
babilônios a gauleses e bretões.”
“Em O pensamento selvagem, Claude
Lévi-Strauss cita o caso surpreendente de indígenas da Nova Guiné que, tendo
aprendido com ocidentais a jogar futebol, não o faziam para vencer mas para
empatar, mesmo que às custas de jogar “tantas partidas quantas [...]
necessárias, para que se equilibr[ass]em em exatamente as perdidas e ganhas”
pelos dois lados. Nos termos do antropólogo, esses indígenas submetiam o jogo a
uma outra lógica – a lógica do rito -,
jogando uma espécie de “partida privilegiada” que visa produzir não a
desigualdade, mas o equilíbrio entre os campos antagonistas. O exemplo diz de
modo eloquente o quanto as práticas pré-modernas se distanciam disto que entendemos
modernamente por jogo. E que, em sua inocência terrível, elas expõem de modo
muito mais aberto o fato de que os destinos da bola conjuram e exconjuram a
violência e a morte.”
“A margem de
narrativas e fabulações que resulta de tudo isso é enorme, independentemente da
representação de qualquer coisa que não seja inerente às próprias
circunstâncias da disputa. O mais simples toque, por exemplo, pode transpirar ingenuidade
ou inteligência, ímpeto desbragado ou quintessenciada maturidade, fulguração ou
obtusidade. A bola pode parecer um caroço de abacate ou um calombo, conforme o
modo como é tocada, em certos momentos, ou uma esfera etérea que se arredonda
quanto mais se desloca, em outros. Pairando sobre tudo, ainda, aquela nuvem
trágica e extasiante que faz de cada jogador, jogo e time a sucessiva
encarnação única e insubstituível de uma necessidade, o retorno implacável e a
manifestação de um arquétipo, ao mesmo tempo em que a revelação de um destino
que se decide em ato, acontecimento singular e irrepetível, ali, num tempo
impalpável que se esvai entre os dedos.”
“Junto com a bola, o
futebol faz rolar a Roda da Fortuna, a roleta que lança os jogadores num campo
de provação que circula entre a promessa, a mediania, o carisma, o prodígio, o
mito, a decadência, o malogro, a desgraça e o renascimento das cinzas.”
Veneno Remédio, o futebol e o Brasil
José Miguel Wisnik, Companhia das Letras, São Paulo, 2008
Por Aline Andra
Resenha perfeita.
ResponderExcluirParabéns, Aline!