Bosco Martins – No
ano em que completa 50 anos que Rosa lançava Grande Sertão: Veredas, você
completa 90 anos, também recriando e remexendo com as estruturas formais da
literatura. Trace um paralelo do que representa este momento.
Manoel de Barros –
Outra vez o Rosa me contou: Precisei botar o nosso idioma a meu jeito afim que
eu me fosse nele. Botei minhas particularidades. Usei de insolências verbais,
sintáticas e semânticas, me encaixei na linguagem. Fiz meu estilo. Eu achava
que o escritor havia que estar pregado na existência de sua palavra. E você,
Manoel? me perguntou. Respondi: eu andei procurando retirar das palavras suas
banalidades. Não gostava de palavra acostumada. E hoje gosto mais de brincar
com as palavras do que de pensar com elas. Tenho preguiça de ser sério.
Bosco Martins – O que ficou na sua cabeça de
seu encontro com Rosa?
Manoel de Barros – Conheci o Rosa na primeira
viagem que ele fazia para o Pantanal. Fui ao encontro de um mito. Porque para
mim ele era um mito. Porém no instante que o conheci ele se tornou um ser
amável e bom de conversa. Conversamos sobre nada e passarinhos. Foi uma
conversa instrutiva!
Bosco Martins – Aos noventa anos sempre
voltamos à infância? Você afirma que seu conhecimento vem da infância, é porque
talvez, como Sócrates, tudo que sabemos é que nada sabemos?
Manoel de Barros – A metáfora era essa mesmo.
Tudo o que eu aprendera até meus noventa anos era nada; meus conhecimentos eram
sensoriais. O que aprendi em livros depois não acrescentou sabedoria,
acrescentou informações. O que sei e o que uso para a poesia vêm de minhas
percepções infantis.
Bosco Martins – Fale um pouco sobre a
infância, a juventude e a velhice.
Manoel de Barros – A um editor, que me sugeriu
que escrevesse um livro de memórias, eu respondi que só tinha memória infantil.
O editor me sugeriu que fizesse memória infantil, da juventude e outra de
velhice. Estou escrevendo agora minhas memórias infantis da velhice.
Bosco Martins – Tem uma frase de um ator que nunca me saiu da cabeça. Dizia que Deus fez tudo bom, só cometendo um erro: a duração da vida. A vida é muito curta e deveria ser não infinita, pois seria muito chata, mas pelo menos o dobro. Duas vidas, uma para ensaiar e outra pra representar. Você concorda com isso?
Bosco Martins – Tem uma frase de um ator que nunca me saiu da cabeça. Dizia que Deus fez tudo bom, só cometendo um erro: a duração da vida. A vida é muito curta e deveria ser não infinita, pois seria muito chata, mas pelo menos o dobro. Duas vidas, uma para ensaiar e outra pra representar. Você concorda com isso?
Manoel de Barros – Concordo sim. E até
proponho uma solução científica. Seja esta:
O Tempo só anda de ida.
A gente nasce, cresce, envelhece e morre.
Pra não morrer
É só amarrar o Tempo no Poste.
Eis a ciência da poesia:
Amarrar o Tempo no Poste!
E respondendo mais: dia que a gente estiver com tédio de viver é só desamarrar o Tempo do Poste.
O Tempo só anda de ida.
A gente nasce, cresce, envelhece e morre.
Pra não morrer
É só amarrar o Tempo no Poste.
Eis a ciência da poesia:
Amarrar o Tempo no Poste!
E respondendo mais: dia que a gente estiver com tédio de viver é só desamarrar o Tempo do Poste.
Bosco Martins – Se a angústia é um espinho na
carne que não se pode tirar, para o poeta a passagem do tempo é angustiante?
Manoel de Barros – Para mim, viver nunca foi
angustiante. Tirando o nunca até que venho bem até aqui. Sou como o vaqueiro
Santiago. Santiago, no galpão desafiou que não cairia de um cavalo famanaz de brabo que havia na fazenda. Todo mundo
zombou do Santiago que estaria a contar vantagem. Então arriaram o cavalo
Famanaz e Santiago amontou de espora e chicote. O cavalo saiu disparado e a
corcovear de lado e pra frente. Ao passar pelo galpão, os peões viram escrito à
espora na paleta do animal esta frase: Até aqui Santiago veio bem. Pois é: até
aqui...
Bosco Martins – O que há de se fazer frente ao
mistério das coisas? E para o poeta, qual o sentido da vida?
Manoel de Barros – Sou um homem de fé. Acho-me
incompleto e por isso preciso do mistério. Pra mim, a razão é um acessório.
Preciso acreditar que estou nas mãos de Deus. Sem fé eu me sinto um símio.
Bosco Martins – O que o poeta teria a dizer
sobre o amor, a inveja e o ódio.
Manoel de Barros – Algum tempo sonhei meu
socialismo. Seria baseado nas palavras de Cristo “Amar o próximo como a nós
mesmos”. Logo enxerguei que o sonho era utópico. Porque o ser humano nasce com
ambições diferentes. Ambição de poder. Ambição de dinheiro. Como então amar ao
próximo como a ele mesmo? A palavra de Cristo é genial e por isso utópica. A
ambição destrói qualquer amor ao próximo. A inveja e o ódio também.
Bosco Martins – O pintor Marc Chagall, morto em
1985, dizia que a coisa mais importante na vida para ele era o amor, “Se você
tem uma mulher a quem você ama, então isso é tudo”.
Manoel de Barros –
Encontrei na Stella a mulher e companheira de todas as horas. Na alegria e na
tristeza – como nos prometemos no casório. Conseguimos um amor profundo e
sonhado em todos os dias.
Bosco Martins – Um dos seus poucos livros
“inéditos” e fora do prelo, Nossa Senhora da Minha Escuridão, é um livro um
tanto deísta, meio católico para quem o leu. Você crê mesmo em Deus, ou como a
maioria dos poetas, no fundo no fundo, é um agnóstico?
Manoel de Barros – Eu não sou agnóstico. Eu
creio em Deus mesmo. E não precisei ler muito para descrer; eu aprendi alguma
coisa lendo. Mas onde eu aprendi mais foi na ignorância. A inocência da
natureza humana ou vegetal ou mineral me ensinou mais. Quem não conhece a
inocência da natureza não se conhece. Não há filosofia nem metafísica nisso. O
que sei, na verdade, vem das percepções infantis. Que não deixa de ser o ensino
pela ignorância.
Bosco Martins – Por que alguns acham graça na
sua poesia? Seria por expor um dialeto infantil? Memória Inventadas – A
Segunda Infância, por exemplo, seria na sua concepção, uma brincadeira de
criança?
Manoel de Barros – Aprendi com meu filho de
cinco anos que a linguagem das crianças funciona melhor para a poesia. Meu
filho falou um dia: Eu conheço o sabiá pela cor do canto dele. Mas o canto não
tem cor! Aí veio Aristóteles e lembrou: É o impossível verossímil. Pois não tem
disso a poesia?
Bosco Martins – Seus versos têm mesmo pernas,
bocas, sexo, etc.? A humanização das coisas está em sua poesia?
Manoel de Barros – Aprendi que o artista não
vê apenas. Ele tem visões. A visão vem acompanhada de loucuras, de coisinhas à
toa, de fantasias, de peraltagens. Eu vejo pouco. Uso mais ter visões. Nas
visões vêm as imagens, todas as transfigurações. O poeta humaniza as coisas, o
tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio.
Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre
desse mesmal.
Bosco Martins – Se tivesse que ser crítico de
seus poemas, quais temas você diria que são mais recorrentes?
Manoel de Barros – Acho que ser gente é o tema
tão mais recorrente. Ou não ser gente. Se o tempo não é humano, eu humanizo.
Amarro o tempo no poste para ele parar. Boto a Manhã de pernas abertas para o
sol. Me horizonto para os pássaros. Uma ave me sonha. O dia amanheceu aberto em
mim.
Bosco Martins – Por que os clássicos são
sempre necessários e quais influências na sua literatura, dos “faróis” da
poesia mundial, Valéry, Baudelaire e Homero?
Manoel de Barros – Penso que a partir dos
“faróis” o poema passou a ser um objeto verbal. Por antes ele andava romântico.
Recebia inspirações celestes. E até se falava em mensagens poéticas. Depois de
Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, poesia passou a ser feito de palavras e não de
sentimentos. Poesia é fenômeno de linguagem e não de ideias.
Bosco Martins – Quanto tempo da “inspiração
súbita” demora para virar um poema?
Manoel de Barros – Inspiração eu só conheço de
nome. O que eu tenho é excitação pela palavra. Se uma palavra me excita eu
busco nos dicionários a existência ancestral dela. Nessa busca descubro motivos
para o poema.
Bosco Martins – Você está escrevendo algo no
momento? E além de escrever, o que dá mais prazer ao poeta nos dias de hoje?
Manoel de Barros – Estou escrevendo a terceira
parte das minhas Memórias Inventadas. No demais, releio minhas velhas
preferências literárias. E de tarde, bem na hora do crepúsculo do dia que
emenda com o meu crepúsculo, ouço música. A música erudita, principalmente,
desabrocha minha imaginação. Acrescento um pouco de álcool que me ajuda a ter
visões. Mais tarde elaboro as visões.
Bosco Martins – De que forma você recebe as
críticas positivas e negativas sobre o seu trabalho?
Manoel de Barros – Não sou diferente: as
críticas contra fazem um gosto amargo na alma. As boas melhoram o nosso ego.
Bosco Martins – Você tem fascínio pelo
primitivismo e já morou com índios. O que seria o conceito de vanguarda
primitiva?
Manoel de Barros – Tenho em mim um sentimento
de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as
origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei
sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva
há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou
a conhecer melhor os índios. Gosto muito também de ler as narrativas dos
antropólogos.
Bosco Martins – Na sua concepção, o ódio não
se caracterizou muito neste último século? Para o poeta ainda existe alguma
esperança no futuro?
Manoel de Barros – Eu me considero um songo no
assunto.
"UM SONGO"
Poema de Manoel de Barros
Aquele homem falava com as árvores e com as
águas
ao jeito que namorasse.
Todos os dias
ele arrumava as tardes para os lírios dormirem.
Usava um velho regador para molhar todas as
manhãs os rios e as árvores da beira.
Dizia que era abençoado pelas rãs e pelos
pássaros.
A gente acreditava por alto.
Assistira certa vez um caracol vegetar-se
na pedra.
mas não levou susto.
Porque estudara antes sobre os fósseis linguísticos
e nesses estudos encontrou muitas vezes caracóis
vegetados em pedras.
Era muito encontrável isso naquele tempo.
Até pedra criava rabo!
A natureza era inocente.
Todos os dias
ele arrumava as tardes para os lírios dormirem.
Usava um velho regador para molhar todas as
manhãs os rios e as árvores da beira.
Dizia que era abençoado pelas rãs e pelos
pássaros.
A gente acreditava por alto.
Assistira certa vez um caracol vegetar-se
na pedra.
mas não levou susto.
Porque estudara antes sobre os fósseis linguísticos
e nesses estudos encontrou muitas vezes caracóis
vegetados em pedras.
Era muito encontrável isso naquele tempo.
Até pedra criava rabo!
A natureza era inocente.
Por Aline Andra
Maravilhoso... Aplausos ao Autor, à Você Aline Andra e ao Texto, literalmente encantador!!!
ResponderExcluirQue bom que você gostou tanto, +JOTA ERRE. Muito obrigada por seu comentário.
ExcluirAline.