domingo, 24 de agosto de 2014

Um songo





 

Manoel de Barros (1916) é um dos meus poetas preferidos. Garimpei este trecho de uma entrevista exclusiva feita pelo jornalista e amigo Bosco Martins para a revista Caros Amigos. Na época, ele dizia que o ideal seria  “amarrar o tempo num poste”. Atualmente, seu silêncio é mais do que justificado, mas talvez ele ainda "more na raiz das palavras".
  
 

Bosco Martins – No ano em que completa 50 anos que Rosa lançava Grande Sertão: Veredas, você completa 90 anos, também recriando e remexendo com as estruturas formais da literatura. Trace um paralelo do que representa este momento.
Manoel de Barros – Outra vez o Rosa me contou: Precisei botar o nosso idioma a meu jeito afim que eu me fosse nele. Botei minhas particularidades. Usei de insolências verbais, sintáticas e semânticas, me encaixei na linguagem. Fiz meu estilo. Eu achava que o escritor havia que estar pregado na existência de sua palavra. E você, Manoel? me perguntou. Respondi: eu andei procurando retirar das palavras suas banalidades. Não gostava de palavra acostumada. E hoje gosto mais de brincar com as palavras do que de pensar com elas. Tenho preguiça de ser sério.
 

Bosco Martins – O que ficou na sua cabeça de seu encontro com Rosa?
Manoel de Barros – Conheci o Rosa na primeira viagem que ele fazia para o Pantanal. Fui ao encontro de um mito. Porque para mim ele era um mito. Porém no instante que o conheci ele se tornou um ser amável e bom de conversa. Conversamos sobre nada e passarinhos. Foi uma conversa instrutiva!



Bosco Martins – Aos noventa anos sempre voltamos à infância? Você afirma que seu conhecimento vem da infância, é porque talvez, como Sócrates, tudo que sabemos é que nada sabemos?
Manoel de Barros – A metáfora era essa mesmo. Tudo o que eu aprendera até meus noventa anos era nada; meus conhecimentos eram sensoriais. O que aprendi em livros depois não acrescentou sabedoria, acrescentou informações. O que sei e o que uso para a poesia vêm de minhas percepções infantis.


Bosco Martins – Fale um pouco sobre a infância, a juventude e a velhice.
Manoel de Barros – A um editor, que me sugeriu que escrevesse um livro de memórias, eu respondi que só tinha memória infantil. O editor me sugeriu que fizesse memória infantil, da juventude e outra de velhice. Estou escrevendo agora minhas memórias infantis da velhice.


Bosco Martins – Tem uma frase de um ator que nunca me saiu da cabeça. Dizia que Deus fez tudo bom, só cometendo um erro: a duração da vida. A vida é muito curta e deveria ser não infinita, pois seria muito chata, mas pelo menos o dobro. Duas vidas, uma para ensaiar e outra pra representar. Você concorda com isso?
Manoel de Barros – Concordo sim. E até proponho uma solução científica. Seja esta:
 O Tempo só anda de ida.
A gente nasce, cresce, envelhece e morre.
Pra não morrer
É só amarrar o Tempo no Poste.
Eis a ciência da poesia:
Amarrar o Tempo no Poste!
E respondendo mais: dia que a gente estiver com tédio de viver é só desamarrar o Tempo do Poste.
 
 
Bosco Martins – Se a angústia é um espinho na carne que não se pode tirar, para o poeta a passagem do tempo é angustiante?
Manoel de Barros – Para mim, viver nunca foi angustiante. Tirando o nunca até que venho bem até aqui. Sou como o vaqueiro Santiago. Santiago, no galpão desafiou que não cairia de um cavalo famanaz  de brabo que havia na fazenda. Todo mundo zombou do Santiago que estaria a contar vantagem. Então arriaram o cavalo Famanaz e Santiago amontou de espora e chicote. O cavalo saiu disparado e a corcovear de lado e pra frente. Ao passar pelo galpão, os peões viram escrito à espora na paleta do animal esta frase: Até aqui Santiago veio bem. Pois é: até aqui...

 
 Bosco Martins – O que há de se fazer frente ao mistério das coisas? E para o poeta, qual o sentido da vida?
Manoel de Barros – Sou um homem de fé. Acho-me incompleto e por isso preciso do mistério. Pra mim, a razão é um acessório. Preciso acreditar que estou nas mãos de Deus. Sem fé eu me sinto um símio.


Bosco Martins – O que o poeta teria a dizer sobre o amor, a inveja e o ódio.
Manoel de Barros – Algum tempo sonhei meu socialismo. Seria baseado nas palavras de Cristo “Amar o próximo como a nós mesmos”. Logo enxerguei que o sonho era utópico. Porque o ser humano nasce com ambições diferentes. Ambição de poder. Ambição de dinheiro. Como então amar ao próximo como a ele mesmo? A palavra de Cristo é genial e por isso utópica. A ambição destrói qualquer amor ao próximo. A inveja e o ódio também.
 
 
Bosco Martins – O pintor Marc Chagall, morto em 1985, dizia que a coisa mais importante na vida para ele era o amor, “Se você tem uma mulher a quem você ama, então isso é tudo”.
Manoel de Barros – Encontrei na Stella a mulher e companheira de todas as horas. Na alegria e na tristeza – como nos prometemos no casório. Conseguimos um amor profundo e sonhado em todos os dias.
 
 
Bosco Martins – Um dos seus poucos livros “inéditos” e fora do prelo, Nossa Senhora da Minha Escuridão, é um livro um tanto deísta, meio católico para quem o leu. Você crê mesmo em Deus, ou como a maioria dos poetas, no fundo no fundo, é um agnóstico?
Manoel de Barros – Eu não sou agnóstico. Eu creio em Deus mesmo. E não precisei ler muito para descrer; eu aprendi alguma coisa lendo. Mas onde eu aprendi mais foi na ignorância. A inocência da natureza humana ou vegetal ou mineral me ensinou mais. Quem não conhece a inocência da natureza não se conhece. Não há filosofia nem metafísica nisso. O que sei, na verdade, vem das percepções infantis. Que não deixa de ser o ensino pela ignorância.
 
 
Bosco Martins – Por que alguns acham graça na sua poesia? Seria por expor um dialeto infantil? Memória Inventadas – A Segunda Infância, por exemplo, seria na sua concepção, uma brincadeira de criança?
Manoel de Barros – Aprendi com meu filho de cinco anos que a linguagem das crianças funciona melhor para a poesia. Meu filho falou um dia: Eu conheço o sabiá pela cor do canto dele. Mas o canto não tem cor! Aí veio Aristóteles e lembrou: É o impossível verossímil. Pois não tem disso a poesia?
 
 
Bosco Martins – Seus versos têm mesmo pernas, bocas, sexo, etc.? A humanização das coisas está em sua poesia?
Manoel de Barros – Aprendi que o artista não vê apenas. Ele tem visões. A visão vem acompanhada de loucuras, de coisinhas à toa, de fantasias, de peraltagens. Eu vejo pouco. Uso mais ter visões. Nas visões vêm as imagens, todas as transfigurações. O poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre desse mesmal.
 
 
Bosco Martins – Se tivesse que ser crítico de seus poemas, quais temas você diria que são mais recorrentes?
Manoel de Barros – Acho que ser gente é o tema tão mais recorrente. Ou não ser gente. Se o tempo não é humano, eu humanizo. Amarro o tempo no poste para ele parar. Boto a Manhã de pernas abertas para o sol. Me horizonto para os pássaros. Uma ave me sonha. O dia amanheceu aberto em mim.
 
 
Bosco Martins – Por que os clássicos são sempre necessários e quais influências na sua literatura, dos “faróis” da poesia mundial, Valéry, Baudelaire e Homero?
Manoel de Barros – Penso que a partir dos “faróis” o poema passou a ser um objeto verbal. Por antes ele andava romântico. Recebia inspirações celestes. E até se falava em mensagens poéticas. Depois de Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, poesia passou a ser feito de palavras e não de sentimentos. Poesia é fenômeno de linguagem e não de ideias.
 
 
Bosco Martins – Quanto tempo da “inspiração súbita” demora para virar um poema?
Manoel de Barros – Inspiração eu só conheço de nome. O que eu tenho é excitação pela palavra. Se uma palavra me excita eu busco nos dicionários a existência ancestral dela. Nessa busca descubro motivos para o poema.
 
 
Bosco Martins – Você está escrevendo algo no momento? E além de escrever, o que dá mais prazer ao poeta nos dias de hoje?
Manoel de Barros – Estou escrevendo a terceira parte das minhas Memórias Inventadas. No demais, releio minhas velhas preferências literárias. E de tarde, bem na hora do crepúsculo do dia que emenda com o meu crepúsculo, ouço música. A música erudita, principalmente, desabrocha minha imaginação. Acrescento um pouco de álcool que me ajuda a ter visões. Mais tarde elaboro as visões.
 
 
Bosco Martins – De que forma você recebe as críticas positivas e negativas sobre o seu trabalho?
Manoel de Barros – Não sou diferente: as críticas contra fazem um gosto amargo na alma. As boas melhoram o nosso ego.
 
 
Bosco Martins – Você tem fascínio pelo primitivismo e já morou com índios. O que seria o conceito de vanguarda primitiva?
Manoel de Barros – Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios. Gosto muito também de ler as narrativas dos antropólogos.
 
 
Bosco Martins – Na sua concepção, o ódio não se caracterizou muito neste último século? Para o poeta ainda existe alguma esperança no futuro?
Manoel de Barros – Eu me considero um songo no assunto.
 
 
"UM SONGO"
 Poema de Manoel de Barros
 Aquele homem falava com as árvores e com as águas
ao jeito que namorasse.
Todos os dias
ele arrumava as tardes para os lírios dormirem.
Usava um velho regador para molhar todas as
manhãs os rios e as árvores da beira.
Dizia que era abençoado pelas rãs e pelos
pássaros.
A gente acreditava por alto.
Assistira certa vez um caracol vegetar-se
na pedra.
mas não levou susto.
Porque estudara antes sobre os fósseis linguísticos
e nesses estudos encontrou muitas vezes caracóis
vegetados em pedras.
Era muito encontrável isso naquele tempo.
Até pedra criava rabo!
A natureza era inocente.









Fonte das imagens: Google
Fonte da entrevista: www.boscomartins.com.br







Por Aline Andra


 
 

2 comentários:

  1. Maravilhoso... Aplausos ao Autor, à Você Aline Andra e ao Texto, literalmente encantador!!!

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    1. Que bom que você gostou tanto, +JOTA ERRE. Muito obrigada por seu comentário.
      Aline.

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