domingo, 15 de junho de 2014

O futebol - parte 1

 Óleo sobre tela - André Lhote


“A palavra campo designa um terreno extenso e não acidentado, e, para além de sua acepção agrícola, o espaço capaz de tornar-se o teatro de um jogo de forças, sugerido pela palavra alemã Kampf, da mesma raiz, significando luta, e pela palavra campeão, o lutador. O campo está a um passo da arena e guerra. Mas uma arena que se presta mais à visibilização do combate, isto é, à sua espetacularização e sua simbolização, do que à sua realização literal, quando ele não se destina expressamente a fins agressivos e passa a decidir, num tira-teima ritual com o outro, sob o olhar de outros, quem detém, por um momento ritualizado, o domínio de uma modalidade. (...) É essencial entender também que, ao dar forma lúdica ao mito da concorrência universal, o futebol criou o campo simbólico onde essa concorrência muda de sentido – tanto socialmente, já que apropriada por agentes que não teriam oportunidade no campo da competição econômica (operários ingleses ou brasileiros pobres, por exemplos), quanto simbolicamente, já que a concorrência se dá em código corporal e não verbal, irradiante de sentidos não determinados, desfrutando de um estatuto correspondente ao da autonomia da obra de arte.” (...) De qualquer modo, dizia Pasolini, o delírio do gol é puramente poético, chegue-se a ele por uma via ou por outra, e, como tal, é o momento e o lugar em que a diferença entre prosa e poesia se desfaz, já que ‘todo gol é sempre uma invenção, é sempre uma subversão do código: todo gol é inexorabilidade, fulguração, estupor, irreversibilidade”.



“O goleiro é sabidamente um ser de exceção, e, nos momentos cruciais, um solitário. Como os indivíduos sagrados e malditos, ele pode o que os outros não podem (tocar a bola com as mãos) e não pode o que os outros podem (atravessar todo o campo e consumar o desejo maior do jogo, o gol). Se a impossibilidade dos outros é ditada, no entanto, pela regra do jogo, a do goleiro é imposta pelo peso de um tabu, que veio caindo sintomaticamente, como sabemos. De todo modo, ele não pode abandonar por completo o gol porque essa é a zona interditada por cuja virgindade ele é o responsável. A virgindade do gol é um tabu no sentido preciso da expressão (que tem sua origem na esfera mágico-religiosa): espaço consagrado simbolicamente, que não deve ser profanado. Tradicionalmente, o goleiro participava, mais que nenhum outro jogador, do destino terrível de todos aqueles que são a representação encarnada do tabu, e a própria metonímia da virgindade sagrada posta no limiar da profanação. No futebol, onde o tabu duplicado no espelho do zero a zero inicial quer ser violado pela confrontação dos contrários, o goleiro figurava como uma espécie de vestal posta a prêmio, virgem guardiã do fogo sagrado cujo poder participa todo o tempo da ameaça de imolação.”


“A ‘lógica dialética’, no futebol, pede a prosa consistente que eleva o tecido do jogo para além do discurso trivial, apático ou protocolar. Como já foi dito, a prosa do futebol não exclui necessariamente a poesia, que, ao contrário, precisa daquela para se realizar. Quando isso acontece (como no quarto gol da seleção brasileira na final contra a Itália, da Copa de 1970, em que a bola vem bailando desde a própria defesa numa sucessão de passes e dribles, gratuitos e eficazes, de Clodoaldo até o passe de Pelé no vazio para o chute inapelável de Carlos Alberto, depois da bola levemente levantada ao acaso pelo próprio ‘Sobrenatural de Almeida’ – em forma de ‘morrinho’), atingimos aquele ponto só formulável em termos como os de Fernando Pessoa, ao fazer o elogio da capacidade superior que a prosa plena teria, de conter em seu corpo a própria poesia e todas as artes: “Há prosa que dança, que canta, que se declama a si mesma. Há ritmos verbais que são bailados, em que a ideia se desnuda sinuosamente, numa sensualidade translúcida e perfeita’.”




Veneno Remédio – O futebol e o Brasil
José Miguel Wisnik, Companhia das Letras, São Paulo, 2008





 




Por Aline Andra

 


Um comentário:

  1. Caso não lesse esta excelente Resenha, dificilmente me interessaria em ler este livro.
    Mais uma vez, parabéns Aline por suas variadas e excelentes matérias.

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