quarta-feira, 22 de maio de 2013

O violoncelista de Sarajevo - Steven Galloway




 
Título original: The cellist of Sarajevo – 198 páginas
Ed. Rocco (2008)

 
Considerado o mais longo cerco da história da guerra moderna, realizado pelas forças sérvias da autoproclamada República Sérvia e do Exército Popular Iugoslavo contra as mal equipadas forças de defesa da Bósnia e Herzegovina, o cerco à cidade de Sarajevo durou de 5 de abril de 1992 a 29 de fevereiro de 1996. Estima-se que mais de doze mil pessoas foram mortas e cinquenta mil feridas durante este período; 85% das vítimas eram civis. Por causa dessas mortes e da migração forçada, em 1995, a população da cidade caiu para 64%.
A geografia do cerco era simples. Sarajevo é uma longa faixa de terra plana cercada de colinas por todos os lados. Os atiradores controlavam todas as partes altas do terreno e uma península ao nível do solo no meio da cidade, Grbavica.
Em 27 de maio de 1992, às 4 horas da tarde, morteiros atingiram um grupo de pessoas que esperava numa fila para comprar pão, deixando 22 mortos e 70 feridos.
Não muito distante dali, vivia um músico de 35 anos, Vedran Smailovic´. Antes da guerra, ele tinha sido violoncelista da Ópera de Sarajevo e desenvolvera uma brilhante carreira para a qual ansiava retornar. Acuado em seu apartamento, viu toda a carnificina e, angustiado, resolveu doar o que era possível e o que tinha de melhor: sua música. Nos 22 dias seguintes, às 4 horas da tarde, Smailovic´ vestia seu fraque, pegava seu violoncelo, deixava seu refúgio e andava até os escombros. Sentando-se num banquinho ao lado da cratera aberta pela bomba, tocava o Adágio em sol menor de Albinoni – uma das mais tristes e tocantes peças do repertório clássico – em homenagem aos mortos.
Música em um campo de batalha. Um tributo à memória dos mortos mas, sobretudo, um gesto ousado, temerário e desafiador. Ele tocava para as ruas desertas, para os veículos e prédios destruídos e para as aterrorizadas e desencantadas pessoas obrigadas a viver num mundo de perda e dor. Uma luta passiva pelo resgate da arte como meio de conforto e cura ou, talvez, para lembrar aos que o ouviam, de uma vida onde existia beleza e esperança. E do poder duradouro disso. Embora as bombas continuassem a cair, ele nunca se feriu.
O jovem autor canadense Steven Galloway inspirou-se nestes fatos reais para narrar paralelamente a história de três pessoas comuns tentando sobreviver aos efeitos devastadores dessa guerra.
“E soou como um grito que cai, separando ar e céu sem esforço. Um alvo aumentava de tamanho, ampliando o foco através do tempo e da velocidade. O momento antes do impacto foi o último instante das coisas como eram. E então o mundo visível explodiu.”
Dragan, um homem de meia idade, mora provisoriamente com a irmã e a família dela depois que seu apartamento foi destruído. Sente-se afortunado por ainda ter um emprego – trabalha numa padaria – onde consegue alimentar-se regularmente e por ter conseguido tirar a esposa e o filho da cidade antes do cerco.
Dragan nos mostra as repercussões do conflito sem ter nenhum envolvimento direto com ele. Suas lutas são travadas entre as ruínas, no caminho de casa até o trabalho, na busca pela sobrevivência dia após dia. Escolher a hora certa para atravessar uma simples rua sob a mira dos atiradores nas colinas pode ser a diferença entre a vida e a morte.
“À frente dele, um casal decidiu que era a boa hora para atravessarem. Ambos em torno dos trinta anos, supõe ele. A mulher está vestindo um vestido feito de um tecido floral que o lembra das cortinas da casa onde cresceu. Eles estão de mãos dadas, e quando dão um passo em direção à rua, ambos soltam as mãos um do outro, e começam a se mover mais rapidamente, não correndo propriamente, mas andando a passos largos. Quando estão a um terço do caminho, Dragan ouve o estalo de um rifle, e uma bala resvala no asfalto em frente ao homem. O  casal hesita, sem saber se deveriam voltar ou continuar. Então o homem toma uma decisão, agarra a mão da mulher e a puxa em sua direção. Desta vez eles correm na direção do outro lado da rua. Eles estão quase lá quando o atirador dispara novamente, mas ambos têm sorte, pois a bala não os atinge porque o marionetista permanece em pé e eles conseguem chegar ao outro lado.
As pessoas ao redor respiram melhor, aliviadas; em parte porque o casal conseguiu chegar, e em parte porque elas não mais teriam que descobrir se o cruzamento estava ou não sob a mira de atiradores. Há uma estranha sensação de alívio em saber onde o perigo está. É mais fácil lidar com isto do que com um sentido indistinto de destruição, de estar incerto sobre de onde os homens nas colinas estão atirando. Pelo menos agora sabem. Por alguns poucos minutos ninguém se aventurará a alcançar a rua, mas Dragan sabe que finalmente alguém arriscará, e depois alguém mais, até que todos que estiveram ali, quando o atirador disparou, tiverem ido embora, e aqueles que chegarem nem mesmo souberem do casal que escapou por pouco. O atirador irá disparar novamente, se não aqui, em outro lugar, e se não for nele, será em outra pessoa, e tudo acontecerá novamente, como um bando de gazelas voltando para a sua fonte de água após uma delas ter sido devorada ali.”
Neste cenário bizarro e desolador, Dragan escolhe afastar-se de todos. É menos doloroso não estar envolvido com pessoa alguma, uma vez que ele não acredita mais que o mundo voltará a ser como antes e que a morte será inevitável.
Kenan é um pai de família que se sente acovardado e impotente frente ao caos e a total desestruturação da cidade que não tem mais energia elétrica constante e abastecimento de água. Desempregado, de estômago vazio por causa da falta de alimentos ou dos preços astronomicamente inflacionados, pois todos encontram-se subjugados aos inescrupulosos contrabandistas do mercado negro, Kenan está a beira do desespero. Insone devido aos bombardeios, com medo de ser recrutado, sua única tarefa, vital embora cada vez mais insuportável, é ir buscar água em fontes distantes para sua família e para uma vizinha idosa e solitária. Carregando pesados recipientes plásticos nos ombros, ele tem que atravessar a cidade enfrentando os perigos  e seu próprio pânico.
“Assim que a porta do apartamento se fecha atrás dele, Kenan pressiona as costas contra a madeira e escorrega até o chão. Suas pernas estão pesadas, as mãos frias. Não deseja ir. O que ele quer é voltar para dentro, cobrir-se na cama, e dormir até que a guerra acabe. Ele quer levar a filha mais nova ao carnaval. Quer ficar sentado, ansioso, esperando até que a filha mais velha retorne do cinema com um garoto a quem não se afeiçoa. Quer que seu filho, o do meio, de apenas dez anos, pense em qualquer outra coisa além de imaginar quanto tempo lhe restará até que se junte à luta do exército.
Sons abafados de vida soam do apartamento, e logo ele se preocupa que alguém possa vir até a porta e se depare com ele ali. Eles não devem vê-lo assim. Não devem saber o quanto está com medo, o quanto ele é inútil e o quanto se tornara impotente. Se não voltasse para casa hoje, não desejava que a última lembrança que tivessem do próprio pai fosse a de um homem sentado no chão tremendo como um cão molhado e amedrontado.”
Arrow, jovem atiradora de longa distância do exército, tem uma habilidade nata que a torna excepcionalmente respeitada a ponto de exigir e conquistar o direito de atuar de forma autônoma. Ela age sozinha e escolhe seus alvos. Consciente da pressão interna e das consequências de seus atos frente às exigências da guerra, sabe que está muito perto de perder os valores éticos que aprendeu quando criança e de não ter mais direito a seus sonhos para um futuro antes imaginado. Seu conflito pessoal é sentir que está se tornando dura e inflexível como o inimigo. Entretanto, uma importante missão lhe é exigida: proteger o violoncelista, que se tornou um símbolo da resistência e da esperança.
“O violoncelista a confunde. Ela não sabe o que ele espera conseguir tocando. Ele não pode acreditar que irá interromper a guerra. Ele não pode acreditar que salvará vidas. Talvez tenha ficado louco, mas Arrow não acha que seja isso.
Ela vislumbrara o rosto daqueles que sofreram um colapso mental, andando pelas ruas sem qualquer cuidado em relação ao perigo. Ela os vira morrer, ou sobreviver, e para eles não parece haver diferença. O violoncelista não lhe dá a entender que se trata de um homem que perdera a vontade de viver. Antes, parece-lhe como se ele se preocupasse com a qualidade da própria vida. Ela não pode dizer em que ele acredita, e se ela queria acreditar nisso também. Sabe apenas que envolve movimento. Seja lá o que for que o violoncelista estiver fazendo, ele não está sentado na rua esperando que algo aconteça. Ele está, ao que tudo indica, acelerando a velocidade das coisas. O que quer que aconteça virá mais cedo por causa dele.”
Um livro para se ler de um fôlego só. De uma verdade crua, já conhecida ou vivenciada por muitos porque fala basicamente dos conflitos, temores e fragilidades que permeiam nossa condição humana. E fala da guerra com suas diversas e reconhecíveis nuances porque todas as guerras em todo o mundo e em qualquer tempo, interiorizadas ou não, fazem também parte de nossa memória coletiva.
Dragan, Kenan e Arrow são personagens que, a meu ver, permanecem além do final do livro e apesar do contexto em que Galloway os fez existirem.
 
 
 
 
Vedran Smailovic´ tocando nas ruínas da biblioteca de Sarajevo
Foto de Mikhail Evstafiev
 
 
 
 
 
Por Aline Andra
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário