Fiquei fã desta
jovem escritora e filósofa, consagrada desde que seu livro “A elegância do ouriço” (Companhia
das Letras, 2008 – 352 págs.), tornou-se um enorme sucesso. Tenho muita cautela
com best-sellers. Desconfio bastante
de uma classificação tão genérica e manipuladora que nivela, por exemplo, o
fantástico “Cem anos de solidão” de Gabriel García Márquez que é no mínimo uma
obra prima e o vulgar “50 tons de cinza” de E. L. James que é no máximo uma
obra de mau gosto.
Sendo assim, resolvi
conhecer Muriel Barbery através de seu primeiro romance “A morte do gourmet”
(Companhia das Letras, 2000 – 124 págs.) e gostei tanto que o reli. Sentia que
muito me escapara na primeira “degustação”, pois é uma história para ser
imaginada e assimilada por todos os sentidos, um belo relato dos prazeres
sensoriais (mas não somente) da boa mesa.
Pierre Arthens, o
gourmet em questão, é um homem de temperamento complexo e instável, que foi
guiado por quase toda a vida pela arrogância, egoísmo e volúpia que o tornaram
tão temido quanto respeitado. Brilhante crítico gastronômico, famoso no mundo
inteiro, aprecia e usufrui do poder de reinar nesse meio exigente e requintado,
conferindo ou destruindo a excelência e a reputação dos maiores chefs da haute cuisine da França.
Com poucas horas de
vida, na solidão de seu quarto, ciente do ressentimento que causou a tantas
pessoas e consciente da sua indiferença, só lhe resta buscar na memória,
revivendo momentos que, desde a infância, considera preciosos, aquela lembrança
especial e mais importante de um sabor que o tenha marcado profundamente.
“Agarrei a eternidade na casca de minhas palavras e
amanhã vou morrer. Vou morrer em quarenta e oito horas – a não ser que esteja
morrendo há sessenta e oito anos, e que só hoje tenha me dignado notar. Seja
como for, a sentença de Chabrot, o médico e amigo, chegou ontem: “Meu caro,
restam-lhe quarenta e oito horas!”. Que ironia! Depois de decênios de
comilança, de torrentes de vinho, bebidas alcoólicas de todo tipo, depois de
uma vida na manteiga, no creme, no molho, na fritura, no excesso a toda hora
sabiamente orquestrado, minuciosamente paparicado, meus mais fiéis lugares-tenentes,
o Sr. Fígado e seu acólito, o Estômago, portam-se maravilhosamente bem e é meu
coração que me abandona. Morro de insuficiência cardíaca. Que amargura também!
Recriminei tanto os outros por não o terem em sua cozinha, em sua arte, que
nunca pensei que talvez fosse a mim que ele fizesse falta, esse coração que me
trai tão brutalmente, com um desprezo mal disfarçado, tal a rapidez com que se
afiou o cutelo...
Vou morrer, mas não tem importância. Desde ontem,
desde Chabrot, só uma coisa importa. Vou morrer e não consigo me lembrar de um
sabor que trota em meu coração. Sei que esse sabor é a verdade primeira e
última de toda a minha vida, que ele detém a chave de um coração que desde
então silenciei. Sei que é um sabor de infância, ou de adolescência, uma
iguaria original e maravilhosa antes de qualquer vocação crítica, antes de
qualquer desejo e qualquer pretensão de expressar meu prazer de comer. Um sabor
esquecido, acomodado no mais profundo de mim mesmo e que se revela no
crepúsculo de minha vida como a única verdade que ali se tenha dito – ou feito.
Procuro e não encontro.”
Muriel traça um
perfil deste homem com seu acerto de contas e sua busca obsessiva através de
suas emocionadas rememorações intercaladas com depoimentos de personagens que
participaram da vida dele. Desde a esposa magoada e abnegada e os filhos
fragilizados e rejeitados até o gato de estimação, todos tem algo a contar e
estes curtos desabafos provocam comoção e reflexão pelo peso dos sentimentos contraditórios e
pela impossibilidade de qualquer resgate.
Quanto à “Elegância
do ouriço”, tive uma boa surpresa. Também gostei tanto que pretendo relê-lo,
pois novamente tenho a sensação de que a escrita poética desta autora nunca é
totalmente absorvida numa primeira leitura. Curiosamente, ela desenvolveu uma
história que se passa no mesmo prédio luxuoso, no centro de Paris, com seus
moradores ricos e fúteis. E na mesma linha de tempo em que Pierre Arthens está
morrendo. Personagens que são apenas esboçados em “A morte do gourmet”
tornam-se mais densos e bem elaborados como, por exemplo, Renée, a zeladora, com seu insuspeitado refinamento,
ganhando plenitude e voz de protagonista. Ela, juntamente com a inteligente adolescente
Paloma, que busca um sentido para a vida e o Sr. Ozu, com sua paz e sabedoria, novo morador que chega para ocupar o apartamento da família
Arthens, discorrem em pensamentos solitários ou compartilhados sobre filosofia, arte, a vida e seus segredos, amores e ausências
de forma arrebatadora. Li, em mais de uma resenha sobre o livro, que são personagens
improváveis. Ora, se encontramos pessoas improváveis na vida real, por que não
na ficção? Aliás, de que é feita a melhor ficção senão do inesperado?
De qualquer forma,
para quem gosta de ler sobre a vida e suas improbabilidades, recomendo os dois
romances e, com segurança, o que mais vier de Muriel Barbery.
Por Aline Andra
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