domingo, 4 de agosto de 2013

A luz é como a água - Gabriel García Márquez


 
 
 
 
No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos.
— De acordo — disse o pai —, vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena.
Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que seus pais achavam.
— Não — disseram em coro. — Precisamos dele agora e aqui.
— Para começar — disse a mãe —, aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro.
Tanto ela como o marido tinham razão. Na casa de Cartagena de Índias havia um pátio com um atracadouro sobre a baía e um refúgio para dois iates grandes. Em Madri, porém, viviam apertados no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Mas no final nem ele nem ela puderam dizer não, porque haviam prometido aos dois um barco a remos com sextante e bússola se ganhassem os louros do terceiro ano primário, e tinham ganhado. Assim sendo, o pai comprou tudo sem dizer nada à esposa, que era a mais renitente em pagar dívidas de jogo. Era um belo barco de alumínio com um fio dourado na linha de flutuação.
— O barco está na garagem — revelou o pai na hora do almoço.— O problema é que não tem jeito de trazê-lo pelo elevador ou pela escada, e na garagem não tem mais lugar.
No entanto, na tarde do sábado seguinte, os meninos convidaram seus colegas para carregar o barco pelas escadas, e conseguiram levá-lo até o quarto de empregada.
— Parabéns — disse o pai. — E agora?
— Agora, nada – disseram os meninos. — A única coisa que a gente queria era ter o barco no quarto, e pronto.
Na noite de quarta-feira, como em todas as quartas-feiras, os pais foram ao cinema. Os meninos, donos e senhores da casa, fecharam portas e janelas, e quebraram a lâmpada acesa de um lustre da sala. Um jorro de luz dourada e fresca feito água começou a sair da lâmpada quebrada, e deixaram correr até que o nível chegou a quatro palmos. Então desligaram a corrente, tiraram o barco, e navegaram com prazer entre as ilhas da casa.
Esta aventura fabulosa foi o resultado de uma leviandade minha quando participava de um seminário sobre a poesia dos utensílios domésticos. Totó me perguntou como era que a luz acendia só com a gente apertando um botão, e não tive coragem para pensar no assunto duas vezes.
— A luz é como a água — respondi. — A gente abre a torneira e sai.
E assim continuaram navegando nas noites de quarta-feira, aprendendo a mexer com o sextante e a bússola, até que os pais voltavam do cinema e os encontravam dormindo como anjos em terra firme. Meses depois, ansiosos por ir mais longe, pediram um equipamento de pesca submarina. Com tudo: máscaras, pés-de-pato, tanques e carabinas de ar comprimido.
— Já é ruim ter no quarto de empregada um barco a remos que não serve para nada.
— disse o pai — Mas pior ainda é querer ter, além disso, equipamento de mergulho.
— E se ganharmos a gardênia de ouro do primeiro semestre? — perguntou Joel.
— Não – disse a mãe, assustada. — Chega. O pai reprovou sua intransigência.
— É que estes meninos não ganham nem um prego por cumprir seu dever — disse ela —, mas por um capricho são capazes de ganhar até a cadeira do professor.
No fim, os pais não disseram que sim ou que não. Mas Totó e Joel, que tinham sido os últimos nos dois anos anteriores, ganharam em julho as duas gardênias de ouro e o reconhecimento público do diretor. Naquela mesma tarde, sem que tivessem tornado a pedir, encontraram no quarto os equipamentos em seu invólucro original. De maneira que, na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam O Último Tango em Paris, encheram o apartamento até a altura de duas braças, mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas, e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos tinham-se perdido na escuridão.
Na premiação final os irmãos foram aclamados como exemplo para a escola e ganharam diplomas de excelência. Desta vez não tiveram que pedir nada, porque os pais perguntaram o que queriam. E eles foram tão razoáveis que só quiseram uma festa em casa para os companheiros de classe.
O pai, a sós com a mulher, estava radiante. — É uma prova de maturidade — disse.
— Deus te ouça — respondeu a mãe.
Na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam A Batalha de Argel, as pessoas que passaram pela Castellana viram uma cascata de luz que caía de um velho edifício escondido entre as árvores. Saía pelas varandas, derramava-se em torrentes pela fachada, e formou um leito pela grande avenida numa correnteza dourada que iluminou a cidade até o Guadarrama.
Chamados com urgência, os bombeiros forçaram a porta do quinto andar, e encontraram a casa coberta de luz até o teto. O sofá e as poltronas forradas de pele de leopardo flutuavam na sala a diferentes alturas, entre as garrafas do bar e o piano de cauda com seu xale de Manilha que se agitava com movimentos de asa a meia água como uma arraia de ouro. Os utensílios domésticos, na plenitude de sua poesia, voavam com suas próprias asas pelo céu da cozinha. Os instrumentos da banda de guerra, que os meninos usavam para dançar, flutuavam a esmo entre os peixes coloridos liberados do aquário da mãe, que eram os únicos que flutuavam vivos e felizes no vasto lago iluminado. No banheiro flutuavam as escovas de dente de todos, os preservativos do pai, os potes de cremes e a dentadura de reserva da mãe, e o televisor da alcova principal flutuava de lado, ainda ligado no último episódio do filme da meia-noite proibido para menores.
No final do corredor, flutuando entre duas águas, Totó estava sentado na popa do bote, agarrado aos remos e com a máscara no rosto, buscando o farol do porto até o momento em que houve ar nos tanques de oxigênio, e Joel flutuava na proa buscando ainda a estrela polar com o sextante, e flutuavam pela casa inteira seus 37 companheiros de classe, eternizados no instante de fazer xixi no vaso de gerânios, de cantar o hino da escola com a letra mudada por versos de deboche contra o diretor, de beber às escondidas um copo de brandy da garrafa do pai. Pois haviam aberto tantas luzes ao mesmo tempo em que a casa tinha transbordado, e o quarto ano elementar inteiro da escola de São João Hospitalário tinha se afogado no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Em Madri de Espanha, uma cidade remota de verões ardentes e ventos gelados, sem mar nem rio, e cujos aborígines de terra firme nunca foram mestres na ciência de navegar na luz.
 
Dezembro de 1978.



 
 SOBRE O AUTOR:

A literatura latino-americana conheceu um processo de crescente reconhecimento internacional a partir da segunda metade do século XX. Gabriel García Márquez, com certeza, foi um dos responsáveis por esta mudança que se constituiu afinal numa "nova" vanguarda literária, na qual figuraram outros autores de primeiro quilate como Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar e Carlos Fuentes.
Colombiano da aldeia de Aracataca, na costa caribenha, nasceu em 6 de março de 1928. Gabo, como era chamado por amigos e parentes desde a infância, interessou-se pelo mundo da fantasia, pois foi criado por seu avô, veterano da guerra civil, que narrava-lhe suas aventuras militares e pela avó, que relatava-lhe fábulas e lendas que transmitiam sua visão supersticiosa e mágica da realidade.
Encontra-se aí o cerne e o berço de sua escrita “simples e simultaneamente deslumbrada, recorrendo aos grandes temas sociais, sem dúvida, mas envolvendo as realidades descritas numa auréola de sonhos, crenças e rituais lendários que bem podem estar na origem de uma nova mitologia literária”.
A este estilo, deu-se o nome de Realismo Fantástico ou Realismo Mágico. Apropriado nos contos e romances onde o verossímil se nivela ao inverossímil numa completa coerência narrativa, mas acho que não se pode classificar uma obra tão extensa e diversificada sem incorrer no erro da simplificação que só desmerece esse que é um dos autores mais importantes e premiados do mundo, inclusive com o Prêmio Nobel de Literatura de 1982.
Sua ligação com seu tempo e com sua identidade latino-americana fez com que ele não se rendesse somente às obras ficcionais. Consagrou-se na carreira jornalística ao ingressar inicialmente na redação de “El Espectador”, onde se tornou o primeiro crítico de cinema do jornalismo colombiano e depois um brilhante cronista, repórter e roteirista de cinema. Foi um ativista político e teve participação significativa na história de seu país e na revolução cubana, de quem se tornou o principal defensor intelectual.
Viveu na Venezuela, França, Estados Unidos e, finalmente, México, já casado e com dois filhos.
Em 1967, depois de publicar vários contos e seu primeiro livro de ficção “Ninguém escreve ao coronel”, isolou-se durante dezoito meses (escrevendo diariamente durante mais de oito horas) para se dedicar a um projeto que cultivou em sua mente durante mais de dez anos: o belíssimo “Cem anos de solidão”.
Para mim, lê-lo foi uma descoberta imensurável. Deslumbrei-me com o ambiente mágico da aldeia de Macondo e com seus personagens desconcertantes. A partir daí, nada de sua obra me escapou e apreciá-la foi continuamente uma inspiração e uma provocação aos sentidos. Penso mesmo que sua prosa é de tal delicadeza e sensibilidade que devemos relê-la à medida que amadurecemos. Vamos desvendando-a aos poucos. Como a poesia.
Gabriel García Márquez ainda escrevia até 2009, quando circulou a notícia de que sofria de leve demência e consequente perda da memória, o que o forçou a se aposentar. Após isso, várias notas sobre sua morte e até uma “Carta de despedida” foram divulgadas através dos veículos de comunicação, todas desmentidas pela família. Ainda não encontrei alguma informação realmente confirmada e prefiro assim. Lembro-me de ter lido, em alguma ocasião, que quando o amigo Carlos Fuentes deu-lhe a notícia da morte de Julio Cortázar, também um amigo e fabuloso escritor, García Márquez disse: “Não acredite em tudo que lê nos jornais”.
Então, seguindo a mesma linha de pensamento, creio que está tudo resolvido. Nosso Gabo não morreu nem morrerá jamais. Ficará “encantado”.
 
 
 
Fonte das imagens: Google
 
 
 
Por Aline Andra
 


Um comentário:

  1. Gostei demais.... A narrativa como sempre é brilhante.
    Vc. realiza excelentes postagens....

    P A R A B É N S !!!!!

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