"A semente nova tem fé.
Ela se enraíza
mais fundo nos lugares que estão mais vazios."
Descobri essa
pequena obra-prima (Ed. Rocco, 92 págs.) em uma das estantes mais escondidas e
de difícil acesso da biblioteca que frequento. E foi grande a minha surpresa!
De Clarissa Pinkola Estés, só conhecia Mulheres
que correm com os lobos (Ed. Rocco, 627 págs.), um livro espantoso e
enriquecedor que revela uma psicologia feminina em seu estado mais puro, demonstrando
através de mitos, contos de fadas e lendas do folclore, como se ligar novamente
ao arquétipo da Mulher Selvagem, nome dado aos instintos naturais que foram, ao
longo do tempo, domesticados e relegados às regiões mais pobres da psique.
A autora é poeta
premiada, analista junguiana conceituada e como cantadora (contadora de velhas histórias) dirige o C.P. Estés
Guadalupe Foundation, uma organização de direitos humanos que tem como uma das
missões a transmissão de histórias reconfortantes, via rádio de ondas curtas,
para lugares em conflito em todo o mundo.
É através deste dom,
experiência profissional e de suas lembranças de infância que ela nos
presenteia com um livro autobiográfico aparentemente, mas só aparentemente, simples
e singelo. Na verdade, ela desnuda sua alma com sua narrativa repleta de símbolos e
significados que nos atingem em cheio.
Ainda criança, Clarissa foi
acolhida e adotada por uma família de origem húngara. De pessoas refugiadas e machucadas
em todos os sentidos pela Segunda Guerra Mundial, que chegaram ao norte rural
dos Estados Unidos no final dos anos 40 e início dos anos 50, ela recebeu as
primeiras lições de vida:
"Das dezenas de parentes refugiados que me criaram,
aprendi das entranhas para fora, sobre a alma e a psique – seus ferimentos, seu
luto e sua cura final. Como a única criança viva na família naquela época,
aprendi não só sobre os aspectos mais sombrios e de maior capacidade de
recuperação na vida, mas também sobre a proximidade constante da morte, em uma
profundidade e em formas geralmente reservadas aos mais velhos."
E foi com os mais
velhos que ela também aprendeu a antiga tradição denominada "fazer-história",
uma prática de criar contos, poemas e outras obras, estimulada e
transmitida de geração para geração.
Entre os "bobos dançarinos, as megeras sábias, os
sábios resmungões e os quase santos" que compunham o grupo idoso da família,
o tio Zovár ocupava um lugar de destaque. Depois de sobreviver aos horrores dos
campos de trabalhos forçados, este camponês solitário e rústico, que amava
profundamente a natureza, tentava sobreviver à dor das
lembranças da guerra através das conversas, caminhadas, histórias e lágrimas
derramadas na companhia dessa criança que também estava se reencontrando e
descobrindo a força de regeneração da terra e da vida.
"Enquanto caminhávamos, titio matutava: 'Já ouvi pessoas
perguntando onde fica o jardim do Éden. Ora! Qualquer lugar que se pise nesta
terra é o jardim do Éden. Toda esta terra, por baixo dos trilhos de trens e das
rodovias, da sua roupagem gasta, do seu entulho, de tudo isso, é o jardim de
Deus – ainda com o frescor do dia em que foi criado.
É verdade que em muitos lugares o Éden está enterrado
e esquecido, mas o jardim pode ser restaurado. Onde quer que haja
terra sem uso, mal utilizada ou exausta, o Éden ainda está bem ali embaixo.'
Foi assim que aprendi que esta terra, da qual
dependíamos para nossa alimentação, nosso ganha-pão, nosso descanso, para a
oportunidade de ver a beleza, deveria ser tratada da mesma maneira que
esperaríamos tratar os outros e a nós mesmos. O que quer que seja que aconteça
a este campo, de algum modo, também acontece a nós."
Em uma época de
sustos, perdas e lutos pessoais – e este momento chega para todos porque o ciclo
da vida é permanente e inegociável – eu creio que, depois de ler este belo
livro, soube aproveitar a oportunidade para lembrar de minhas próprias
histórias e daquelas vividas por todos da minha família que já se foram. Histórias
que me foram contadas e recontadas por eles e que,
preservadas na minha memória e cuidadas com carinho e respeito, não só provam e resgatam o tempo de suas existências como confirmam, irrefutavelmente, a mim mesma tal como sou.
Sim, a semente tem
fé porque acredita e busca os campos vazios e à espera para serem transformados
novamente em jardins do Éden, mas também acaba descobrindo lugares escondidos e
doloridos em nós para ressemear. Basta que estejamos com o coração aberto e o
meu, felizmente, estava.
Recomendadíssimo!
Por Aline
Andra