"Velho homem" de Vincent Van Gogh
Uns desses dias fui
assaltado. Foi num virar de esquina, num desses becos onde o escuro se
aferrolha com chave preta. Nem decifrei o vulto: só vi, em rebrilho fugaz, a
arma em sua mão. Já eu pensava fora do pensamento: eis-me! A pistola foi-me
justaposta no peito, a mostrar-me que a morte é um cão que obedece antes mesmo
de se lhe ter assobiado.
Tudo se embrulhava
em apuros e eu fazia contas à vida. O medo é uma faca que corta com o cabo e
não com a lâmina. A gente empunha a faca e, quanto maior a força de pulso, mais
nos cortamos.
— Para trás!
Obedeci à ordem,
tropeçando até me estancar de encontro à parede. O gelo endovenoso, o coração
em cristal: eu estava na ante-câmara, à espera de um simples estalido. Cumpria
os mandamentos do assaltante, tudo mecanicamente. E mais parvalhado que o cuco
do relógio. O que fazer? Contra-atacar? Arriscar tudo e, assim sem mais nem
nada, atirar a vida para trás das costas?
— Diga qualquer
coisa.
— Qualquer coisa?
— Me conte quem é.
Você quem é?
Medi as palavras.
Quanto mais falasse e menos dissesse melhor seria. O maltrapilho estava ali
para tirar os nabos e a púcara. Melhor receita seria o cauteloso silêncio.
Temos medo do que não entendemos. Isso todos sabemos. Mas, no caso, o meu medo
era pior: eu temia por entender. O serviço do terror é esse — tornar irracional
aquilo que não podemos subjugar.
— Vá falando.
— Falando?
— Sim, conte lá
coisas. Depois, sou eu. A seguir é a minha vez.
Depois era a vez
dele? Mas para fazer o quê? Certamente, para me executar a sangue esfriado,
pistolando-me à queima-roupa. Naquele momento, vindo de não sei onde, circulou
por ali um furtivo raio de luz, coisa pouca, mais para antever que para ver. O
fulano baixou o rosto, e voltou a pistola em ameaça.
— Você brinca e eu …
Não concluiu ameaça.
Uma tosse de gruta lhe tomou a voz. Baixou, numa fracção, a arma enquanto se
desenvencilhava do catarro. Por momento, ele surgiu-me indefeso, tão frágil que
seria deselegância minha me aproveitar do momento. Notei que tirava um lenço e
se compunha, quase ignorando minha presença.
— Vá, vamos mais
para lá.
Eu recuei mais uns
passos. O medo dera lugar à inquietação. Quem seria aquele meliante? Um desses
que se tornam ladrões por motivo de fraqueza maior? Ou um que a vida empurrara
para os descaminhos? Diga-se de passagem que, no momento, pouco me importavam
as possíveis bondades do criminoso. Afinal, é do podre que a terra se alimenta.
E em crise existencial, até o lobisomem duvida: será que existe o cão fora da
meia-noite?
Fomos andando para
os arredores de uma iluminação. Foi quando me apercebi que era um velho. Um
mestiço, até sem má aparência. Mas era um da quarta idade, cabelo todo branco.
Não parecia um pobre. Ou se fosse era desses pobres já fora de moda, desses de
quando o mundo tinha a nossa idade. No meu tempo de menino tínhamos pena dos
pobres. Eles cabiam naquele lugarzinho menor, carentes de tudo, mas sem perder
humanidade. Os meus filhos, hoje, têm medo dos pobres. A pobreza converteu-se
num lugar monstruoso. Queremos que os pobres fiquem longe, fronteirados no seu
território. Mas este não era um miserável emergido desses infernos. Foi quando,
cansado, perguntei:
— O que quer de mim?
— Eu quero
conversar.
— Conversar?
— Sim, apenas isso,
conversar. É que, agora, com esta minha idade, já ninguém me conversa.
Então, isso?
Simplesmente, um palavreado? Sim, era só esse o móbil do crime. O homem
recorria ao assalto de arma de fogo para roubar instantes, uma frestinha de atenção.
Se ninguém lhe dava a cortesia de um reparo ele obteria esse direito nem que
fosse a tiro de pistola. Não podia era perder sua última humanidade — o direito
de encontrar os outros, olhos em olhos, alma revelando-se em outro rosto.
E me sentei, sem
hora nem gasto. Ali no beco escuro lhe contei vida, em cores e mentiras. No
fim, já quase ele adormecera em minhas histórias eu me despedi em requerimento:
que, em próximo encontro, se dispensaria a pistola. De bom agrado, nos
sentaríamos ambos num bom banco de jardim. Ao que o velho, pronto, ripostou:
— Não faça isso. Me
deixe assaltar o senhor. Assim, me dá mais gosto.
E se converteu,
assim: desde então, sou vítima de assalto, já sem sombra de medo. É assalto sem
sobressalto. Me conformei, e é como quem leva a passear o cão que já faleceu.
Afinal, no crime como no amor, a gente só sabe que encontra a pessoa certa
depois de encontrarmos as que são certas para outros.
SOBRE O AUTOR:
Em 1972, decidiu estudar Medicina. Por essa altura, o regime exercia grande pressão sobre os estudantes universitários. O conjunto dessas circunstâncias levou-o a colaborar com a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), partido clandestino marcado pela luta dos moçambicanos contra a relação de subjugação por Portugal. Após dois anos, abandonou a universidade e enveredou pelo jornalismo, tornando-se repórter e diretor da Agência de Informação de Moçambique, onde formou ligações de correspondentes entre as províncias durante o tempo de guerra pela libertação, da revista semanal “Tempo” e do jornal “Notícias de Maputo”.
Em 1985, abandonou a carreira jornalística. Voltou à Universidade, onde se formou em Biologia. Como biólogo, dirige a IMPACTO Lda, empresa que faz estudos de impacto ambiental em Moçambique. Além disso, é professor da cadeira de ecologia em diversos cursos da Universidade Eduardo Mondlane.
Paralelamente, continua a escrever e a publicar seus livros. Sua criação literária é totalmente influenciada pelo regionalismo. Estão presentes os sentimentos e a realidade do povo moçambicano, sua ligação com a terra e com a tradição, além de uma nova maneira de falar ou “falinventar” que continua a ser a sua marca registrada. Fã declarado de Guimarães Rosa, que também provocou uma revolução de inventiva linguística, pode-se dizer que Mia Couto é um “escritor da terra”. Sua linguagem fértil em neologismos confere à sua obra uma singular percepção e uma interpretação delicada e sutil da beleza interna das coisas. Cada palavra inventada não é somente fruto de extrema criatividade. Ela encontra seu lugar através de um processo poético de mestiçagem entre o português “culto” e as variáveis formas dialectais da população moçambicana, uma das mais pobres e martirizadas do mundo, recém-saída de 30 anos de guerra civil e onde persiste uma forte transmissão da literatura e dos saberes essencialmente por via oral. Numa cultura onde se diz que "cada velho que morre é uma biblioteca que arde", Mia empreende a fundamental tarefa de ligar a tradição oral africana à tradição literária ocidental.
Sua obra é extensa e diversificada incluindo poesias, contos, romances e crônicas. É o único escritor africano a tornar-se membro da Academia Brasileira de Letras e é, atualmente, o autor moçambicano mais traduzido. Seus livros são divulgados em 24 países e alguns são adaptados para teatro e cinema, já tendo recebido vários prêmios nacionais e internacionais.
Um autor que surpreende, contamina o coração de quem o lê e que escreve “pelo prazer de desarrumar a língua”. Nada menos que brilhante!
Fontes das imagens:
Google
Fontes das
pesquisas: http://mozindico.blogspot.com.br
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